"Proibido Fumar" dizia o letreiro. Ignorando o sinal e a sua asma, acendeu um cigarro. Podia ser o seu último. De imediato, lhe ofereceram um whisky e, delicadamente, lhe pediram para apagar o cigarro. Delicadamente, respondeu que não. Mas aceitou o whisky...podia ser o seu último. Depois, ligou o laptop e, na ausência de headphones, partilhou o áudio do seu filme favorito com todos os presentes. Aborreceu-se e começou a desfolhar uma revista feminina, fazendo comentários "desagradáveis" alto e bom som. Quando se levantou para ir ao wc olhares aliviados cruzaram-se com olhares revirados "Homenzinho insuportável!", "É preciso mesmo não se ter respeito nenhum!".
A seguir, pediu um cozido à portuguesa, o seu prato de eleição. Não tinham, obviamente. Desculpando-se, tentaram seduzi-lo com uma sandes de carne assada "Olhe lá, que são muito apetitosas!", em vão. De repente, o chão estremeceu e, apavorado, largou a gritar. A seguir, o avião despenhou-se. . .
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quinta-feira, 28 de outubro de 2010
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Crónica - Um egoísmo altruísta
A Maria chegou mais tarde. Ainda teve de fugir, estrategicamente, de um encontro "Aii o meu sobrinho está no hospital. Ligo-te depois". Nunca ligava. Mas todos tinham respondido ao meu SOS. Até o Afonso, que não se deixava ver há meses, se descolou dos relatórios e dos gémeos e apareceu. Os gémeos já tinham 2 anos e hoje ficaram com a avó. Ficaram com a avó mais de uma semana porque ele aceitou a missão de dogsitting, com os 4 cães da Guida, enquanto ela foi descobrir o namorado, em Paris, com outra.
O Afonso é daquelas pessoas que não conseguem dizer que não. É como eu. Adorava ser menos altruísta e conseguir dizer um redondo NÃO, quando não posso mais. Mas não consigo.
O assunto exigia seriedade e todos o entenderam pelo tom da minha voz, na convocatória. Por isso, todos compareceram. Reunidos, anunciei que ia abandonar toda a vida pessoal e profissional que havia, até então, construído, onde todos se incluíam, para de forma pseudo-definitiva e altamente altruísta me mudar, pseudo-definitivamente, para África. "Nigéria, mais concretamente".
"Endoideceste??", "Queres apanhar malária?", "Tu nem podes ver uma aranha!","E a tua carreira?", "Sim, não foste promovida há 3 meses??", "Para que achas que te querem lá?", "E o João?", "E a tua mãe??", "Com quem vou almoçar às quartas?"
Apesar de toda a "preocupação" dos meus amigos não me senti nem um pouco demovida nas minhas convicções. Precisavam lá de mim, e eu ia. Mas deixava cá tanta coisa...
Liguei para a instituição de voluntariado: "Desculpe, mas não consigo!". E não fui. Até hoje...
O Afonso é daquelas pessoas que não conseguem dizer que não. É como eu. Adorava ser menos altruísta e conseguir dizer um redondo NÃO, quando não posso mais. Mas não consigo.
O assunto exigia seriedade e todos o entenderam pelo tom da minha voz, na convocatória. Por isso, todos compareceram. Reunidos, anunciei que ia abandonar toda a vida pessoal e profissional que havia, até então, construído, onde todos se incluíam, para de forma pseudo-definitiva e altamente altruísta me mudar, pseudo-definitivamente, para África. "Nigéria, mais concretamente".
"Endoideceste??", "Queres apanhar malária?", "Tu nem podes ver uma aranha!","E a tua carreira?", "Sim, não foste promovida há 3 meses??", "Para que achas que te querem lá?", "E o João?", "E a tua mãe??", "Com quem vou almoçar às quartas?"
Apesar de toda a "preocupação" dos meus amigos não me senti nem um pouco demovida nas minhas convicções. Precisavam lá de mim, e eu ia. Mas deixava cá tanta coisa...
Liguei para a instituição de voluntariado: "Desculpe, mas não consigo!". E não fui. Até hoje...
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quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Crónica - Saber bem, saber mal
Esfregava os degraus das escadas incessantemente. Esfregava com quantas forças tinha. Esfregava com quantas forças lhe restavam. Esfregava como se limpasse a sua própria alma.
"Oh mulher 'tou t'ouvir a esfregar essas escadas há mais de hora e meia! Tá sujo de quê que custe tanto a sair??" -
"Nada, nada. Só uns pingos de tinta das obras dos do 3ºA. Não têm cuidado com nada!"
"Ai mas 'tão a pintar o quarto de vermelho? Parece coisa sei lá de quê!"
Conhecia a vida de todos os inquilinos do prédio, como boa coscuvilheira que era. Ironicamente seria a coscuvilhice que a poria naqueles trabalhos.
Mas ali sabia-se tudo. O que se passava no 3ºB rapidamente passava para o 2ºB de onde escorria para o 1ºB e dali para a porteira. Esta encarregava-se de espalhar pelo resto do edifício. Fosse que o marido da do 4ºE tinha chegado bêbado, ontem "Que grande desplante!", fosse que a filha da do 1ºC andava com um "larápio" que passava "Ai esta juventude onde irá parar", fosse que a do 4ºB tinha sido despedida "Sabe-se lá porquê" "Mas coitadinha, isto está tão mal", fosse que a empregada da do 2ºA andava a roubar pratas e meias que "Isto já não se pode confiar em ninguém", fosse que a do 3ºD tinha um amante "E veja bem, 20 anos mais novo!"...Pelos corredores daquela escada tudo se sabia e comentava.
Mas a coscuvilhice que alimentava aquela porteira havia de a levar até à porta do 2ºE, havia de a levar a assistir àquela discussão, havia de a levar a tentar acalmar aquela exaltação, havia de a levar a relembrar um velho quadro, havia de a levar a partir do vaso da palmeira da entrada na cabeça daquele "cobarde", havia de salvar a vida àquela namorada, havia de matar aquele "ignóbil", havia de sujar, para sempre, aquelas escadas.
Esfregava os degraus incessantemente...tentando ocultar o inocultável, naquele prédio onde tudo se sabia e comentava...
"Oh mulher 'tou t'ouvir a esfregar essas escadas há mais de hora e meia! Tá sujo de quê que custe tanto a sair??" -
"Nada, nada. Só uns pingos de tinta das obras dos do 3ºA. Não têm cuidado com nada!"
"Ai mas 'tão a pintar o quarto de vermelho? Parece coisa sei lá de quê!"
Conhecia a vida de todos os inquilinos do prédio, como boa coscuvilheira que era. Ironicamente seria a coscuvilhice que a poria naqueles trabalhos.
Mas ali sabia-se tudo. O que se passava no 3ºB rapidamente passava para o 2ºB de onde escorria para o 1ºB e dali para a porteira. Esta encarregava-se de espalhar pelo resto do edifício. Fosse que o marido da do 4ºE tinha chegado bêbado, ontem "Que grande desplante!", fosse que a filha da do 1ºC andava com um "larápio" que passava "Ai esta juventude onde irá parar", fosse que a do 4ºB tinha sido despedida "Sabe-se lá porquê" "Mas coitadinha, isto está tão mal", fosse que a empregada da do 2ºA andava a roubar pratas e meias que "Isto já não se pode confiar em ninguém", fosse que a do 3ºD tinha um amante "E veja bem, 20 anos mais novo!"...Pelos corredores daquela escada tudo se sabia e comentava.
Mas a coscuvilhice que alimentava aquela porteira havia de a levar até à porta do 2ºE, havia de a levar a assistir àquela discussão, havia de a levar a tentar acalmar aquela exaltação, havia de a levar a relembrar um velho quadro, havia de a levar a partir do vaso da palmeira da entrada na cabeça daquele "cobarde", havia de salvar a vida àquela namorada, havia de matar aquele "ignóbil", havia de sujar, para sempre, aquelas escadas.
Esfregava os degraus incessantemente...tentando ocultar o inocultável, naquele prédio onde tudo se sabia e comentava...
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quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Crónica - A Insígnia
"JOANA!" - ecoou a voz dele, como se quisesse cravar o nome dela nas paredes húmidas e bolorentas - "Responda só ao que lhe perguntei!"
Ela contorcia-se na cadeira, cruzava e descruzava as pernas, torcia e contorcia os dedos sobre o colo, sobre a saia azul escura de pregas...Sempre tinha odiado aquela farda, camisa branca, imaculadamente engomada, meias puxadas até ao cimo da canela, lacinho de cetim ao pescoço... Sempre tinha odiado fardas. Facto que mudaria três anos mais tarde quando se enamoraria de um soldado da Infantaria. Mas isso ela ainda não sabia.
Agora, estava ali, perante aquele homem austero e resoluto, com o dobro do seu tamanho, olhos azuis penetrantes como dois glaciares afiados, na lapela usava uma série de pins cujo significado ela ignorava, e vestia sempre o mesmo fato castanho no Inverno e o cinzento, no Verão. Aquela figura inspirava verdadeiro temor reverencial. As rugas que sustentavam o seu semblante pareciam estar ali desde a sua juventude. Sabia-se que era a favor do "outro" sistema e que tinha sido preso depois da Revolução. Agora, dirigia aquele colégio a pulso de ferro. Podia ter sido bonito, este homem, mas o seu espírito dizimava qualquer sinal exterior de beleza. De certa forma, lembrava-lhe o seu avô que não conhecera senão em fotografias muito antigas, de outros tempos e outras eras. "Era um homem sério!" - diziam-lhe. Para ela, nem podia ser de outra forma já que em nenhuma foto lhe vira o sorriso.
"JOANA, RESPONDA-ME!" e o tempo parecia suspenso na tensão entre as duas criaturas. Ela então, limpou à saia o suor das mãos, levantou-se e disse, por fim "Sim sr., fui eu! Eu fiz a cruz suástica na sua estátua, do pátio".
Ela contorcia-se na cadeira, cruzava e descruzava as pernas, torcia e contorcia os dedos sobre o colo, sobre a saia azul escura de pregas...Sempre tinha odiado aquela farda, camisa branca, imaculadamente engomada, meias puxadas até ao cimo da canela, lacinho de cetim ao pescoço... Sempre tinha odiado fardas. Facto que mudaria três anos mais tarde quando se enamoraria de um soldado da Infantaria. Mas isso ela ainda não sabia.
Agora, estava ali, perante aquele homem austero e resoluto, com o dobro do seu tamanho, olhos azuis penetrantes como dois glaciares afiados, na lapela usava uma série de pins cujo significado ela ignorava, e vestia sempre o mesmo fato castanho no Inverno e o cinzento, no Verão. Aquela figura inspirava verdadeiro temor reverencial. As rugas que sustentavam o seu semblante pareciam estar ali desde a sua juventude. Sabia-se que era a favor do "outro" sistema e que tinha sido preso depois da Revolução. Agora, dirigia aquele colégio a pulso de ferro. Podia ter sido bonito, este homem, mas o seu espírito dizimava qualquer sinal exterior de beleza. De certa forma, lembrava-lhe o seu avô que não conhecera senão em fotografias muito antigas, de outros tempos e outras eras. "Era um homem sério!" - diziam-lhe. Para ela, nem podia ser de outra forma já que em nenhuma foto lhe vira o sorriso.
"JOANA, RESPONDA-ME!" e o tempo parecia suspenso na tensão entre as duas criaturas. Ela então, limpou à saia o suor das mãos, levantou-se e disse, por fim "Sim sr., fui eu! Eu fiz a cruz suástica na sua estátua, do pátio".
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quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Ao Kevin (e a todos os que já tiveram um melhor amigo)
Faz, hoje, 6 meses desde que partiste. Hoje, dia 6, desde que entraste naquela clínica veterinária e já não saíste. A mesma clínica onde tínhamos ido, de urgência, uns meses antes, quando começaste com os sintomas. A mesma clínica onde tivemos de ir, todos os dias, nos dias seguintes. À porta, enquanto esperávamos, aquela velhota sentenciou-te logo: "o meu cão morreu disso"!
Hoje, passados 6 meses, continuo a entrar em casa de olhos postos no chão, à espera que apareças; continuo a deixar um restinho de pão ou de fruta para que tu devores sem sequer cheirares; continuo a achar que às 19h te tenho de ir passear; continuo à espera que, a cada manhã, estejas deitado, como sempre, aos pés da minha cama; continuo a olhar para os teus brinquedos certa de que não brincámos o suficiente; continuo a chamar-te quando me sinto triste...
Mas sempre foste tão independente e fiteiro, tão teimoso e manipulador, tão ciumento e fiel, tão desobediente e lutador, tinhas tantas manhas e manias...e apenas não gostavas de ficar sozinho! Fechar-te na cozinha significava Noite de St. António - expressão utilizada pelos meus pais para noites sem dormir - raspavas a porta incansavelmente, saltavas, uivavas desesperado até que alguém te ia abrir a porta e tu saías airoso ou, por outras, o meu pai ia lá pôr-te na ordem porque "cão é cão".
Mas era espantoso como entendias tudo o que dizíamos, como sabias sempre quando estávamos a falar de ti, como sabias sempre quando íamos sair e ficavas sozinho, como sabias sempre quando tinhas feito disparate e te ias esconder atrás da minha mãe, como eras corajoso e pateta por rosnares a qualquer cão com o dobro do teu tamanho, como ladravas, furioso, a qualquer alminha que se aproximasse do portão, como eras apaixonado por maçã; como, só com o olhar, conseguias tudo aquilo que querias, fosse comida, ir à rua, ou dormir no sofá novo; como gostavas que estudasse em voz alta para ti, como te apercebias dos momentos de tristeza e alegria e conforme estes te comportavas...
Faz, hoje, 6 meses desde que partiste, desde que te fiz a última festinha e te dei o último beijo. Fisicamente, claro.
"Um cão nunca abandona o dono. Mesmo que não te veja, sei que estás aí: é quanto me basta"*
"Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós"
*Manuel Alegre, 'Cão como nós'
Hoje, passados 6 meses, continuo a entrar em casa de olhos postos no chão, à espera que apareças; continuo a deixar um restinho de pão ou de fruta para que tu devores sem sequer cheirares; continuo a achar que às 19h te tenho de ir passear; continuo à espera que, a cada manhã, estejas deitado, como sempre, aos pés da minha cama; continuo a olhar para os teus brinquedos certa de que não brincámos o suficiente; continuo a chamar-te quando me sinto triste...
Mas sempre foste tão independente e fiteiro, tão teimoso e manipulador, tão ciumento e fiel, tão desobediente e lutador, tinhas tantas manhas e manias...e apenas não gostavas de ficar sozinho! Fechar-te na cozinha significava Noite de St. António - expressão utilizada pelos meus pais para noites sem dormir - raspavas a porta incansavelmente, saltavas, uivavas desesperado até que alguém te ia abrir a porta e tu saías airoso ou, por outras, o meu pai ia lá pôr-te na ordem porque "cão é cão".
Mas era espantoso como entendias tudo o que dizíamos, como sabias sempre quando estávamos a falar de ti, como sabias sempre quando íamos sair e ficavas sozinho, como sabias sempre quando tinhas feito disparate e te ias esconder atrás da minha mãe, como eras corajoso e pateta por rosnares a qualquer cão com o dobro do teu tamanho, como ladravas, furioso, a qualquer alminha que se aproximasse do portão, como eras apaixonado por maçã; como, só com o olhar, conseguias tudo aquilo que querias, fosse comida, ir à rua, ou dormir no sofá novo; como gostavas que estudasse em voz alta para ti, como te apercebias dos momentos de tristeza e alegria e conforme estes te comportavas...
Faz, hoje, 6 meses desde que partiste, desde que te fiz a última festinha e te dei o último beijo. Fisicamente, claro.
"Um cão nunca abandona o dono. Mesmo que não te veja, sei que estás aí: é quanto me basta"*
"Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós"
*Manuel Alegre, 'Cão como nós'
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