quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Crónica - Saber bem, saber mal

Esfregava os degraus das escadas incessantemente. Esfregava com quantas forças tinha. Esfregava com quantas forças lhe restavam. Esfregava como se limpasse a sua própria alma.
"Oh mulher 'tou t'ouvir a esfregar essas escadas há mais de hora e meia! Tá sujo de quê que custe tanto a sair??" -
"Nada, nada. Só uns pingos de tinta das obras dos do 3ºA. Não têm cuidado com nada!"
"Ai mas 'tão a pintar o quarto de vermelho? Parece coisa sei lá de quê!"
Conhecia a vida de todos os inquilinos do prédio, como boa coscuvilheira que era. Ironicamente seria a coscuvilhice que a poria naqueles trabalhos.

Mas ali sabia-se tudo. O que se passava no 3ºB rapidamente passava para o 2ºB de onde escorria para o 1ºB e dali para a porteira. Esta encarregava-se de espalhar pelo resto do edifício. Fosse que o marido da do 4ºE tinha chegado bêbado, ontem "Que grande desplante!", fosse que a filha da do 1ºC andava com um "larápio" que passava "Ai esta juventude onde irá parar", fosse que a do 4ºB tinha sido despedida "Sabe-se lá porquê" "Mas coitadinha, isto está tão mal", fosse que a empregada da do 2ºA andava a roubar pratas e meias que "Isto já não se pode confiar em ninguém", fosse que a do 3ºD tinha um amante "E veja bem, 20 anos mais novo!"...Pelos corredores daquela escada tudo se sabia e comentava.

Mas a coscuvilhice que alimentava aquela porteira havia de a levar até à porta do 2ºE, havia de a levar a assistir àquela discussão, havia de a levar a tentar acalmar aquela exaltação, havia de a levar a relembrar um velho quadro, havia de a levar a partir do vaso da palmeira da entrada na cabeça daquele "cobarde", havia de salvar a vida àquela namorada, havia de matar aquele "ignóbil", havia de sujar, para sempre, aquelas escadas.
Esfregava os degraus incessantemente...tentando ocultar o inocultável, naquele prédio onde tudo se sabia e comentava...

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